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Published July 23, 2022 | Version v1
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POR UMA SOCIEDADE SEM MANICÔMIOS contribuições de um psiquiatra democrático

  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA

Description

O processo de Reforma Psiquiátrica, no Brasil, materializou-se através da Lei 10.216/2001 e inspirou-se na Psiquiatria Democrática italiana. Apesar dos limites e dos obstáculos enfrentados, teve avanços indiscutíveis que contribuíram para consolidar a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), embora, atualmente, venha sofrendo sérios retrocessos, tendo em vista as recentes medidas governamentais que têm atingido diretamente as políticas públicas e, particularmente, a Política Nacional de Saúde Mental com o avanço da chamada ‘Contrarreforma Psiquiátrica’ (Chagas; Brutti, 2019; Lima, 2019; Nunes et al, 2019).1

1             CHAGAS, G. D.; BRUTTI, T. A. As recentes mudanças na Política Nacional de Saúde Mental frente à Constituição de 1988. Revista Caribeña de Ciencias Sociales, outubro, 2019. Disponível em: https://www.eumed.net/rev/caribe/2019/10/recentes-mudancas-politica.html. Acesso em: 29 mai. 2020.
LIMA, R. C. O avanço da Contrarreforma Psiquiátrica no Brasil. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 29, n. 1, p.1-5, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v29n1/pt_0103-7331-physis-29-01-e290101.pdf. Acesso em: 29 mai. 2020.
NUNES, M. O. et al. Reforma e contrarreforma psiquiátrica: análise de uma crise sociopolítica e sanitária a nível nacional e regional. Ciênc. Saúde Coletiva, v. 24, n. 12, p. 4489-4498, 2019. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232019001204489&script=sci_arttext&tlng=p. Acesso em: 16 abr. 2020.

A presença dos italianos no Brasil assessorando esse movimento foi fundamental, por isso não podemos deixar de mencionar a interlocução estabelecida com Franco Basaglia, quando esteve no Brasil, na década de 1970. Ernesto Venturini, autor das palestras que compõem esta coletânea, dá continuidade a essa interlocução nos brindando com sua presença em várias cidades brasileiras, onde não só proferiu palestras, como também participou de reuniões, assessorando diretamente os profissionais dos serviços substitutivos de saúde mental. Um exemplo disso foi sua vinda a Campina Grande (PB), no período de 13 a 15 de junho de 2012. O evento intitulado ‘Reforma Psiquiátrica em movimento: diálogos com o psiquiatra italiano Ernesto Venturini’ foi organizado pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em parceria com a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e com a Coordenação de Saúde Mental do município. Na ocasião, além de proferir duas palestras na UEPB, Venturini visitou vários serviços substitutivos da rede de saúde mental de Campina Grande e se reuniu com os profissionais desses serviços para debater sobre questões do cotidiano do trabalho em saúde mental.

Em 2018, participou de outro evento em Campina Grande, o ‘II Reforma Psiquiátrica em Movimento: diálogos com o psiquiatra italiano Ernesto Venturini’, no dia 08 de maio, na UEPB. Na ocasião, proferiu duas palestras e participou do lançamento dos seguintes livros: ‘Saúde Mental: saberes e fazeres’ (EDUEPB, 2016), coletânea que organizamos e que contou com um capítulo de sua autoria; e do seu livro ‘A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização’ (FIOCRUZ, 2016). Foi nessa oportunidade em que surgiu a ideia de convidá-lo para publicar, pela Editora da UEPB, algumas de suas palestras no Brasil que ainda não haviam sido publicadas, e ele aceitou o convite. Assim, nasceu esta coletânea, que objetiva dar continuidade ao processo de diálogo com Ernesto Venturini e contribuir para incrementar visando fortalecer o movimento antimanicomial.
Em época de grande retrocesso político, esta coletânea é, sobretudo, um instrumento de resistência. Reúne onze palestras que nos foram repassadas em língua portuguesa, proferidas no período de 2010 a 2019, em que Venturini vai apresentando suas reflexões, ora apoiadas em referenciais teóricos, ora em sua prática profissional. Essas palestras se interligam por meio de questões fundamentais que são retomadas e dão sustentação às ideias que o autor pretende defender a partir do ‘saber dialogado com a prática’, o qual foi sendo construído durante sua trajetória profissional e pessoal. Optamos por manter, na medida do possível, o tom coloquial, uma vez que se trata de palestras. Para garantir as referências bibliográficas ou outra informação necessária que facilitasse o entendimento do leitor, utilizamos notas de rodapé.Na primeira palestra, intitulada ‘A cultura cura a loucura?’, proferida, em 2010, numa Conferência de abertura do Seminário Internacional ‘Cartografia cultural: as dobras da loucura’, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/RJ), Venturini nos convida a refletir sobre a diversidade como um critério de ‘identidade’, e não, comumente, como um critério de ‘anormalidade’. E é nesse caminho de exaltação do diverso que o autor explicita que “a complexidade dos caracteres e das formas é o maior valor de uma cultura” e defende que o respeito à diversidade é o que “cria uma cultura”. Ao refletir acerca da questão da loucura, refere-se a pessoas, e não, a diagnósticos. A partir de uma crítica à Psiquiatria asilar, que se propõe a ‘normalizar a diversidade’, estimula-nos a pensar em outras alternativas para cuidar dessas pessoas em sofrimento psíquico que não se reduzam a determinadas “tecnologias” e na possibilidade de uma “cultura profissional”, que incentive a autonomia, a participação e o protagonismo dessas pessoas. A linguagem da arte destaca-se como a possibilidade de uma prática terapêutica que produza ‘liberdade’.
Na segunda palestra, intitulada ‘(Re)Territorializar a vida’, proferida no 5º Congresso Brasileiro de Saúde Mental (São Paulo, 2016), Venturini, partindo da forma como a doença era tratada na Grécia Antiga, faz um contraponto com a atualidade e ressalta que, no mundo contemporâneo, as pessoas são entregues às instituições. Numa sociedade neoliberal, “os usuários de saúde mental são consumidores de assistencialismo”, afirma. Acrescenta que, no contexto reformista, isso não é diferente e se expressa no território, onde é possível encontrar respostas para minar “a normalidade alienada”, e defende que a Reforma deve oferecer aos usuários possibilidades de protagonismo e de mudança social, que envolvem o território no processo de cuidado e propõe o termo ‘(re)territorializar a vida’. Aprofundando a reflexão sobre a Reforma Psiquiátrica no Brasil, ressalta que, no atual contexto político, a palavra de ordem é ‘resistir’ e que, dentre outros aspectos, os profissionais de Saúde deveriam orientar sua prática para a “formação de redes sociais”. Para ele, “a cidadania é a ferramenta terapêutica”. Conclui nos instigando a refletir sobre a possibilidade de diversificar a norma, desenvolver o capital social de uma comunidade e lutar por uma sociedade sem manicômios.
A terceira palestra – ‘O que é a Psiquiatria?’– foi proferida durante o 3º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde (Natal, 2017). Venturini a inicia remetendo-se ao ‘fim da Psiquiatria asilar’, que teve lugar não só na Itália, como também em vários países do mundo. Com uma abordagem centrada na saúde mental, e não, na doença mental, foi fundado um novo paradigma embasado na ideia de que “a liberdade é terapêutica”. Outros protagonistas ‘entraram em cena’, como os usuários e os familiares. Nesse processo, a Psiquiatria asilar se modifica, procura atender às demandas atuais de legitimidade e recorre a ‘novos modelos de diagnóstico’. A partir da apresentação dos resultados de vários estudos, a credibilidade científica da Psiquiatria e a capacidade de intervir psicossocialmente na área da saúde mental são questionadas. Estimula-nos a considerar o neoliberalismo como um dos grandes obstáculos que a proposta reformista enfrenta e direciona nosso olhar para ‘a cidade violenta’, que gera insegurança e incerteza e sufoca a cidadania e a solidariedade. Então, pouco a pouco, a Reforma Psiquiátrica brasileira é revisitada e são apontados seus pontos ‘fortes’ e ‘fracos’, assim como os desafios e o papel dos profissionais de saúde. Ele defende a ideia de uma cidade hospitaleira, produtora de saúde, onde a prática da desinstitucionalização esteja presente tanto dentro quanto fora dos serviços de saúde mental. “A cidadania é terapêutica!”, conclui.

A quarta palestra que compõe esta coletânea – ‘O poder utópico da imaginação contra a burocracia’ – também foi proferida durante o 3º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde (Natal, 2017). Ao qualificar a Reforma Psiquiátrica como uma revolução, Venturini nos convida a pensar sobre o que significa a utopia e nos conduz, pouco a pouco, para esta questão: ‘Temos que parar de sonhar e ser realistas?’ Porém, segundo ele, ser realista nos conduz a uma nova institucionalização. Quando o processo de reforma psiquiátrica brasileiro se burocratizou, afastou os ‘processos emancipatórios’, afirma ele. Propõe, então, a capacidade imaginativa como uma ferramenta potente e nos auxilia a refletir sobre como devemos fazer para estimulá-la.
A quinta palestra, ‘A profunda democracia dos mundos locais’, foi proferida também durante o 3º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde (Natal, 2017).

Nela, Venturini defende que a “utopia possível da Reforma” consiste em estimular a capacidade dos usuários de protagonizarem mudanças numa perspectiva coletiva, considerando suas necessidades e seu sofrimento. Convida-nos a pensar sobre o lugar da marginalidade na sociedade neoliberal e defende novamente a ideia de que é nos “mundos locais do território” que se inventam democraticamente outras formas de existência, embora também haja desigualdades e contradições. Os grandes objetivos da Reforma, segundo ele, deveriam ser de “reconhecer o sentido produzido por cada sujeito” e considerar a capacidade desses sentidos de “operarem trocas afetivas e materiais”. E é nesse processo de reflexão que Venturini defende, mais uma vez, a luta por sociedades mais hospitaleiras e produtoras de saúde e felicidade.

A sexta palestra – ‘A prática da cidadania é terapêutica’ – foi proferida no II Reforma Psiquiátrica em Movimento: diálogos com o psiquiatra italiano Ernesto Venturini (Campina Grande, 2018), em que ele se propõe a falar sobre algumas experiências no campo da saúde mental. A primeira delas é sobre o livro ‘Anatomia de uma epidemia’, de Robert Whitaker. Venturini apresenta esse livro, que se propõe a refletir sobre o aumento do uso de psicofármacos e a possibilidade de outras alternativas terapêuticas e nos instiga a pensar a respeito do uso dos psicotrópicos e dos recursos psicoterápicos nos serviços substitutivos de saúde mental. A segunda experiência ressaltada por ele refere-se aos ‘Ouvidores de Vozes’ e às possibilidades de os sujeitos em sofrimento psíquico serem protagonistas no processo de cuidado e autocuidado. Em seguida, traz algumas reflexões sobre suas experiências em Madagascar, no continente africano, onde desenvolveu um trabalho na rede comunitária. Outra experiência que Venturini traz para reflexão nessa palestra é a do Zimbábue, com ‘Trabalhadores de Saúde não Profissionais’, descrita pelo psiquiatra Dixon Chibanda. A quinta experiência a que se refere é a do ‘Diálogo Aberto’. Ele enfatiza como se caracteriza essa proposta e sua relevância e conclui a palestra afirmando que, em todas essas experiências, o que há de comum é que elas possibilitam o exercício da cidadania e nos conduz novamente a refletir sobre a prática da cidadania como uma prática terapêutica.
A sétima palestra, nomeada de ‘A saúde mental em tempos de cólera’, foi apresentada também no II Reforma Psiquiátrica em Movimento: diálogos com o psiquiatra italiano Ernesto Venturini, em 2018, e continua bem atual, como se tivesse sido escrita nessa época pandêmica de 2020/2021. O título da palestra parafraseia a famosa obra de Gabriel Garcia Marques, ‘Amor em tempos de cólera’. Venturini esclarece que os tempos de cólera se referem ao que vem sendo exacerbado nos últimos anos com a degradação de direitos e valores de forma “pandêmica”. Para tecer a linha de raciocínio do seu texto, ele recorre a pensamentos de filósofos e escritores clássicos e contemporâneos. Assim, traz as contribuições de Bauman sobre a liquidez do mundo moderno e, aos poucos, nos envereda por um caminho que nos leva a refletir sobre questões sociais, psicológicas e ambientais. Refere-se às ferramentas de controle da sociedade neoliberal e problematiza o papel do mercado, da mídia e do mundo virtual. Traz para a discussão as políticas públicas de saúde mental e a existência dos manicômios. Nesse processo, aprofunda a reflexão sobre o neoliberalismo como produtor do sofrimento psíquico, dando ênfase ao processo de alienação. Por fim, apresenta algumas alternativas para “a cólera dominante” e ressalta a importância da prática libertadora e coletiva com base no diálogo munido de autoconfiança e autocrítica.
A oitava palestra – ‘A cidadania e sua afetação e implicação na clínica e na política’ – foi realizada no 6º Congresso Brasileiro de Saúde Mental, em Brasília, no ano de 2018. Venturini recorda o objetivo principal da Reforma Psiquiátrica brasileira, que é de construir a cidadania, vale-se da afirmação de Sérgio Arouca de que a “reforma sanitária brasileira é um projeto civilizatório” e ressalta o avanço do Sistema Único de Saúde (SUS) e o cuidado com as pessoas em sofrimento psíquico. Os modelos asilares precários foram substituídos por ações de promoção de saúde mental mais eficazes, humanizadas e mais econômicas. Formula algumas críticas e aponta os desafios que a proposta reformista brasileira enfrenta. Destaca, no entanto, a força da ‘clínica ampliada’, como ‘prática social’ e ‘de liberdade’, que muda a ênfase da doença para o sujeito que sofre, e leva em conta sua existência, o contexto social e sua capacidade de protagonizar mudanças junto com outros atores sociais.
Na nona palestra – ‘Normalidade e diversidade entre psicopatologia e diagnóstico’ – realizada no Curso de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2019, Venturini inicia suas reflexões colocando em discussão as contribuições da Psicopatologia, questiona a neutralidade científica e evoca, mais uma vez, a reflexão acerca do normal, da norma, da saúde e da doença, relacionados aos diversos contextos históricos. É por meio dessa reflexão que ele nos leva ao tema hodierno da medicalização da vida, do poder-saber hegemônico da Medicina, do “controle clínico da população”, através do discurso especializado, e do uso indiscriminado dos psicofármacos. Para falar sobre a medicalização da vida – e por que não dizer da psicologização da vida? – o autor adentra os meandros dos diagnósticos e das classificações psiquiátricas, sempre relacionando à historiografia e ao entendimento do sofrimento psíquico e da construção de um novo estigma. Venturini também não perde de vista os riscos inerentes à relação terapêutica no processo psicoterápico e nos convida, mais uma vez, a valorizar a autocrítica.
Na décima palestra – ‘A contribuição de Franca e Franco Basaglia para a crítica à patologização da vida’ – realizada no 3º Seminário Internacional ‘A Epidemia das Drogas Psiquiátricas’, ENSP/Fiocruz (RJ), 2019, Venturini retoma conceitos complementares, como o de desvio e diversidade, que contribuem para se compreender bem mais a patologização da vida. A partir da retomada conceitual da norma, na perspectiva de um mundo mais globalizado, ele resgata a reflexão dos Basaglias, nas décadas de sessenta e setenta, acerca das instituições violentas – asilos e prisões – e de tolerância – comunidades terapêuticas ou centros comunitários – fundamental para compreender os modelos de delimitação entre o desviante e o normal. Destaca a necessidade de manter uma visão dialética, com o cuidado de não sucumbir à mística instituição tolerante que tenta encobrir as contradições sociais e ideológicas. Com esse resgate, Venturini nos propõe uma reflexão sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), a diversidade, a Medicina, a demência senil e a saúde mental que levem a práticas menos institucionalizantes, mais despatologizantes e a prática da desmedicalização sob a ótica do tratamento em liberdade, com foco no sujeito, em sua reinserção social e no resgate da cidadania.
A décima primeira e última palestra, intitulada ‘Saudades de Basaglia’, Venturini proferiu em um Seminário na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte – em 2019, para comemorar os 40 anos da visita de Basaglia ao Brasil. Inicialmente, apresenta algumas informações sobre Franco e Franca Basaglia, narra algumas situações vividas durante a Reforma Psiquiátrica na Itália e ressalta alguns princípios que orientaram essa experiência. Num segundo momento, fala sobre a vinda de Basaglia ao Brasil e ilustra suas colocações com algumas frases que ele proferiu durante as conferências e as palestras que realizou no país. Dentre as colocações realizadas por Venturini, destaca-se, ainda, o paralelo que ele faz entre o fim da ditadura no Brasil, a retomada da liberdade e a atual situação que o país vive. Ressalta que deveremos ter a mesma esperança de demolir o “estado de barbárie” em que vivemos. A mensagem é imbuída de vontade e de crença na possibilidade de haver mudanças.
Como diz o poeta espanhol Antônio Machado, “Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar.”
Caminhemos, então, e continuemos o diálogo.

 

Thelma Maria Grisi Velôso
Maria do Carmo Eulálio

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